Em setembro a Lei Orgânica da Saúde (Lei 8080, de 1990), que regulamenta o funcionamento do Sistema Único de Saúde, completa 29 anos. O SUS é uma das maiores conquistas sociais do Brasil, mas está em risco. Sobre o tema, entrevistamos a prof. e médica Alzira Jorge, diretora-geral do Hospital Risoleta Neves – principal unidade de referência para a região norte de Belo Horizonte e municípios do entorno, com acolhimento a mais de 1 milhão de pessoas.
Compartilhamos abaixo respostas dela sobre avanços e desafios do SUS, em um momento muito especial, quando o Risoleta completa 21 anos de história.
O momento é de comemoração para o SUS?
O SUS representa uma grande conquista social porque possibilitou o acesso de todos os cidadãos brasileiros à saúde pública. De lá para cá, houve muitos avanços, mas ainda há muitos desafios a vencer. O momento é de comemoração e também de reflexão sobre a sustentabilidade do sistema.

Que avanços destaca?
Os 3 princípios do SUS representam avanços na saúde pública nacional. Universalização: com a criação do SUS nos tornamos o único país com mais de 100 milhões de habitantes no mundo a ter um sistema universal de saúde, público e gratuito. Integralidade: são diferentes atendimentos para amparar as necessidades dos usuários – desde a promoção e prevenção, por meio de vacinas e diagnósticos precoces, por exemplo, passando por tratamentos e reabilitações. Há também procedimentos muito complexos, como transplantes, tudo isso via SUS e realizado por equipes multiprofissionais em diferentes níveis de atenção à saúde. Equidade: os atendimentos são ofertados aos indivíduos de acordo com suas necessidades, oferecendo mais a quem mais precisa e menos a quem requer menos cuidados.
Para garantir esses princípios foram criados vários programas, como Samu, UPA, Saúde na Escola, Saúde da Criança, Saúde da Mulher, Saúde da Família, Farmácia Popular, Humaniza SUS. Ofertamos todas as vacinas preconizadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS), reduzimos a mortalidade infantil e materna, construímos redes de atenção à saúde, ampliamos os serviços nos hospitais, criamos as vigilâncias. Hoje há 290 mil unidades de saúde espalhadas pelo país. Definimos medicamentos para as doenças mais prevalentes e oferecemos tratamentos, inclusive de alta complexidade, a toda a população. A maior parte dos atendimentos de urgência e emergência no país é feita no SUS e, em relação à alta complexidade, o SUS é extremamente importante. Por exemplo: 90% de toda a diálise é feita no SUS e 95% do tratamento de câncer e cirurgias cardíacas também. Temos o maior programa público do mundo de transplantes. Em relação à atenção básica, são quase 40 mil equipes de Saúde da Família nos centros de saúde com 270 mil agentes comunitários de saúde.

E quais são os desafios?
1) Financiamento do SUS
O gasto por pessoa é insuficiente para garantir a todos a atenção integral e, quando comparamos com outros países, observamos um subfinanciamento no seu componente público. É preciso mais investimentos para garantir a universalidade, a integralidade e equidade do cuidado. E, a partir de 2016, a situação piorou com o congelamento dos gastos e investimentos em saúde, até 2036.
2) Outra ameaça é a proposta em tramitação no Congresso dos planos populares.
A ideia é direcionar dinheiro do SUS para planos populares de saúde, voltando há décadas onde eram vendidos planos que pouco ofertavam e, quando o paciente necessitava de internações ou procedimentos mais complexos, havia negativa de cobertura. A proposta em discussão flexibiliza a regulação desses planos e permite a volta dessa oferta fragmentada, que não garante uma atenção integral.
3) Ainda, as novas políticas de atenção básica e de saúde mental.
Quanto à primeira, não há mais o incentivo e priorização da Estratégia de Saúde da Família, deixando a cargo do gestor decidir por essa equipe ou a tradicional – que é mais enxuta e não precisa ter agente comunitário de saúde (ACS). Nessa direção, não é mais necessário cobrir 100% da população por parte dos ACS e esse agente saúde pode acumular funções como agente de endemias ou zoonoses. E nessa nova política tem uma maior flexibilização da carga horária dos profissionais da atenção básica. Sendo assim, algumas questões são priorizadas em detrimento da integralidade e esse é um grande risco. A outra política, da saúde mental, é considerada um retrocesso para tudo já conquistado nessa área. Nos últimos anos foi construída uma potente rede ambulatorial, retirando o paciente dos hospitais psiquiátricos. Porém, a nova política retoma o investimento maior nesses hospitais (em detrimento dos Cersam, Caps, Centros de Convivências, projetos artísticos e desenvolvimento dos usuários, que preparam para o retorno a sociedade) e investe fortemente nas comunidades terapêuticas para usuários de álcool e outras drogas, com estruturas insuficientes e muitas vezes sem o adequado acompanhamento multiprofissional, sendo encontrados em muitas delas, de acordo com auditoria nacional e estadual realizadas, pacientes com seus direitos violados.
4) Além disso, destaco o corte de investimentos em ciência, tecnologia, pesquisa e inovação, que estão seriamente ameaçadas.
Alguns artigos e estudos têm mostrado piora nos indicadores de saúde e sociais por conta desse desinvestimento e das políticas na contramão do que vinha, com muito êxito, sendo conseguido. Vale destacar algumas consequências de todo esse processo como a queda da cobertura vacinal, o aumento da mortalidade infantil e materna (em especial mulheres negras e pobres), o aumento do índice de Gini (que mede a desigualdade social). Estudos recentes (dois últimos anos) mostram que a redução dos gastos com proteção social está associada ao aumento de pobreza e desigualdades, com consequências para a saúde: piora da saúde mental, depressão, ansiedade, stress, abusos de álcool e outras drogas, aumento de suicídios, de doenças crônicas e também infecto-contagiosas.
Para finalizar, qual a importância do Risoleta, um hospital 100% SUS?
O Risoleta está completando, no dia 21 deste mês, 21 anos de história. Não é fácil gerenciar e manter um hospital público com porta aberta 24 horas por dia, 365 dias por ano, para cuidado integral de Urgência e Emergência, das Doenças Clínicas e Cirúrgicas e Maternidade. Tentamos prestar uma assistência de qualidade e individualizada, com uma equipe qualificada e comprometida, transpondo os desafios financeiros da rede pública de saúde. Temos 370 leitos, 6 salas cirúrgicas e Ambulatório de egressos, somos um Hospital de Ensino responsável pela formação de inúmeros profissionais e também nos orgulhamos dos dados assistenciais: 6.100 atendimentos de urgência/mês, 1.500 internações/mês e 450 cirurgias/mês e 270 partos/mês.

Sobre Alzira de Oliveira Jorge:
Possui doutorado em Saúde Coletiva pela Unicamp e mestrado em Demografia pela UFMG. Foi assessora de Planejamento da Diretoria do Hospital das Clínicas (1999/2003) e assessora da Diretoria do Hospital Risoleta Neves (2009). Médica concursada da PBH, foi diretora do Distrito Sanitário de Venda Nova, médica auditora, assessora dos distritos sanitários, coordenadora de Saúde Mental e gerente de Regulação e Atenção Hospitalar do município. Após ser concursada pela UFMG, foi cedida para atuar como diretora do Departamento de Atenção Especializada da Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde (2011-2013) e como secretária adjunta de Saúde de MG (2015/2016). Atuou na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) como secretária executiva e como diretora adjunta de Normas e Habilitação dos Produtos (Dipro). Atualmente é Diretora Geral do Hospital Risoleta Tolentino Neves, sob gestão da UFMG. Formação e experiência profissional atuando principalmente com os seguintes temas: planejamento e gestão em saúde, gestão hospitalar, regulação e avaliação de sistemas, serviços e políticas de saúde.

Foto: arquivo pessoal